O que é a Fé?
A primeira e mais
básica resposta à pergunta do título poderá, sem dúvida, ser formulada do
seguinte modo: a fé é uma determinada atitude dos humanos. Como tal, é bem
começar por uma descrição breve das caraterísticas dessa atitude, que aliás são
partilhadas por todos os tipos de fé, religiosa ou não, cristã ou
não.
A atitude humana
que melhor pode descrever a atitude de fé é a da confiança. Ter fé é, no sentido
mais básico, confiar em algo ou alguém diferente de nós mesmos. Assim,
opõem-se-lhe duas atitudes: a da desconfiança total, que levaria, em muitos
casos, ao desespero; ou a da autoconfiança total, ou seja, a da confiança apenas
em nós mesmos. Portanto, a fé pressupõe capacidade de confiar e capacidade de
confiar noutros.
A confiança noutros
implica, ao mesmo tempo, a capacidade de receber algo, reconhecendo que não
podemos conquistar e produzir tudo o que somos e temos por nós mesmos. Porque
quem confia em alguém mais do que em si mesmo, sabe que há dimensões da vida que
só esse alguém, em quem se confia, pode dar.
O caso mais
gritante é o do bebé, que confia na sua mãe ou no seu pai, relativamente a tudo
o que tem a ver com a sua existência. Não considera, ainda – como acontecerá
depois com muitos adultos – que é autossuficiente e que merece, pelo seu
trabalho, aquilo que tem. O que tem e o que é, sente-o como dádiva permanente
dos pais e confia nessa dádiva, despreocupadamente.
A atitude do bebé
aproxima-nos de um nível de fé importante: o que se relaciona com o fundamento
da nossa existência, seja quanto à sua origem seja quanto ao seu futuro. Porque
não somos nós que nos damos a nós mesmos nem que garantimos o nosso próprio
futuro. Assim sendo, ou desesperamos desconfiadamente da nossa existência,
perante o perigo de deixar de ser, ou confiamos numa dádiva permanente do ser.
Esse será o nível mais profundo da fé, relativamente ao sentido primeiro e
último da existência de cada um, que é acolhido como uma dádiva milagrosa e
imerecida. Ter fé é acolher a existência como dádiva gratuita de
outro.
Mas, a este nível,
esse Outro em que se confia é ainda muito indefinido. É apenas o próprio
mistério de sermos – alguns diriam, «por acaso». Aceitar que há um Deus pessoal
que nos origina e nos quer na vida, dando-nos gratuitamente essa vida, para que
a aceitemos, mesmo quando é dura e parece não fazer sentido – isso é já uma
modalidade religiosa ou teológica da confiança. A fé, então, torna-se fé
teológica. Mas o Deus que nos dá a nós mesmos é, ainda, uma entidade muito
vaga.
Aceitar que esse
Deus, que dá a vida e nos dá para a vida, vive connosco, se revela e nos liberta
da morte em Jesus Cristo, é confiar de modo cristão. Ter fé cristã é, portanto,
aceitar que Deus, em Jesus Cristo, nos dá a vida, para além da morte e para além
de todas a nossas capacidades de a conquistar. Isso permite uma atitude de
confiança que abre à esperança, para além de todo o absurdo aparente. E, ao
mesmo tempo, implica o conhecimento de que o único caminho dessa esperança é a
caridade, como dádiva da vida ao outro. Ou seja, a fé cristã está sempre ligada
às outras duas virtudes teologais, pois só assim o dinamismo do acolhimento da
vida dada por Deus é possível.
A confiança
fundamental que determina a atitude de fé do cristão implica, ao mesmo tempo, a
confissão convicta de um conjunto de afirmações sobre Deus e sobre os humanos, a
que chamamos Credo ou símbolo da fé. Nessas afirmações condensa-se a descrição
da nossa confiança e dos seus motivos. Por isso, a confissão explícita de fé é
imprescindível à atitude crente, mesmo que a sua formulação linguística deva
tudo ás linguagens humanas. E essa confissão, assim como a atitude
correspondente, vive-se num leque de relações comunitárias, que nos ligam aos
outros crentes, do nosso tempo e de outras gerações, assim como aos próprios
não-crentes. Ou seja, não há fé cristã se não for inserida num dinamismo
comunitário e numa tradição. Se assim não fosse, a fé seria puro sentimento
individual e subjetivo, de iniciativa própria e para auto realização pessoal.
Mas, ao assim ser, negava-se a si mesma, pois negava a básica atitude de
confiança no outro, mais do que em si mesmo.
João Manuel Duque, in Ecclesia,
25-09-2012
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