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segunda-feira, 18 de março de 2013

 


Santa Sé


Deus nunca se cansa de nos perdoar!
Primeiro Angelus do Papa Francisco
ROMA, 17 de Março de 2013 (Zenit.org) - Oferecemos a tradução das palavras do Papa Francisco aos fiéis e peregrinos reunidos neste domingo (17) para o primeiro Angelus do Pontificado, pronunciadas da janela do palácio apostólico, na Praça de São Pedro.
Irmãos e irmãs, bom dia!
Depois do primeiro encontro na quarta-feira passada, hoje posso, novamente, saudar a todos! E estou feliz em fazê-lo no domingo, dia do Senhor! Isso é belo, é importante para nós cristãos: se encontrar no domingo, saudar, conversar, como agora, aqui na praça. Uma praça que, graças aos meios de comunicação, tem o tamanho do mundo.
Neste quinto domingo da Quaresma, o Evangelho nos apresenta a história da mulher adúltera (cf. João 8,1-11), que Jesus salva da morte. Comovente a atitude de Jesus: não ouvimos palavras de desprezo, não ouvimos palavras de condenação, mas apenas palavras de amor, de misericórdia, que convidam à conversão. "Nem eu te condeno: vai, e de agora em diante não peques mais" (v. 11).
Eh! Irmãos e irmãs, a face de Deus é de um pai misericordioso, que sempre tem paciência. Você já pensou na paciência de Deus, a paciência que Ele tem com cada um de nós? Essa é a Sua misericórdia. Sempre tem paciência, paciência conosco, nos entende, espera por nós, não se cansa de nos perdoar se sabemos voltar para ele com um coração contrito. "Grande é a misericórdia do Senhor", diz o Salmo.
Esses dias, eu pude ler um livro de um cardeal - o cardeal Kasper, um teólogo in gamba (atualizado, bem formado), um bom teólogo - sobre a misericórdia. E me fez tão bem aquele livro, mas não pensem que eu estou fazendo publicidade dos livros dos meus cardeais! Não é assim! Mas me fez tão bem, tão bem ... O cardeal Kasper falava de ouvir misericórdia, esta palavra muda tudo. É o melhor que podemos ouvir: mudar o mundo. Um pouco de misericórdia torna o mundo menos frio e mais justo.
Precisamos entender bem essa misericórdia de Deus, esse Pai misericordioso que tem tanta paciência ... recordemos o profeta Isaías, que diz: mesmo se nossos pecados forem vermelho escarlate, o amor de Deus irá torná-los brancos como a neve. É belo, isso da misericórdia! Lembro-me, apenas Bispo, em 1992, chegou a Buenos Aires, Nossa Senhora de Fátima, e fez-se uma grande Missa para os doentes. Eu fui confessar naquela missa. E perto do final da Missa, levantei-me porque tinha que celebrar uma crisma.
Chegou até mim uma senhora idosa, humilde, muito humilde, mais de oitenta anos. Eu olhei para ela e disse: "Vovó - porque assim chamamos as pessoas idosas: vovó – A senhora quer se confessar?". "Sim", disse ela. "Mas se a senhora não tem pecado ...". E ela disse: "Todos nós temos pecados ...". "Mas talvez o Senhor não vai perdoá-los ...". "O Senhor perdoa tudo"- disse ela, com convicção - "Como a senhora sabe?”. "Se o Senhor não perdoasse tudo, o mundo não existiria”. Eu tive vontade de perguntar-lhe: "Diga-me, a senhora estudou na Universidade Gregoriana?". Porque essa é a sabedoria que dá o Espírito Santo: sabedoria interior para a misericórdia de Deus.
Não esqueçamos esta palavra: Deus nunca se cansa de nos perdoar, nunca! "Oh, padre, qual é o problema?". Bem, o problema é que nós nos cansamos, nós não queremos, nos cansamos ​​de pedir perdão. Ele nunca se cansa de perdoar, mas nós, às vezes, nos cansamos de pedir perdão. Não nos cansemos nunca, não nos cansemos nunca! Ele é um Pai amoroso que perdoa sempre, que tem um coração misericordioso para com todos nós. E nós aprendemos a ser misericordiosos com todos. Invoquemos a intercessão de Nossa Senhora que teve em seus braços a Misericórdia de Deus feito homem.
(Após o Angelus)
Dirijo uma cordial saudação a todos os peregrinos. Obrigado pelo acolhimento e oração. Rezem por mim, eu vos peço. Renovo o meu abraço para os fiéis de Roma, extensivo a todos vocês, que vieram de várias partes da Itália e do mundo, bem como aqueles que se unem a nós através dos meios de comunicação. Eu escolhi o nome do santo padroeiro da Itália, São Francisco de Assis, e isso reforça a minha ligação espiritual com esta terra, onde - como vocês sabem – está a origem minha família. Mas Jesus nos chamou para fazer parte de uma nova família: a sua Igreja, nesta família de Deus, caminhando juntos na via do Evangelho. Que o Senhor vos abençoe, Nossa Senhora vos proteja. Não se esqueçam: o Senhor não se cansa de perdoar! Somos nós que cansamos de pedir perdão.
Bom domingo e bom almoço!

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Último Angelus: Papa destaca importância da oração


No último Angelus, Bento XVI destaca importância da oração
No último Angelus, Bento XVI destaca importância da oração.
O Papa Bento XVI rezou neste domingo, 24, o último Angelus de seu pontificado. Acompanhado por fiéis de várias partes do mundo na Praça São Pedro, o Santo Padre, que encerra o seu pontificado nesta quinta-feira, 28, agradeceu a todos pelas orações a ele dirigidas e o afeto que os fiéis têm manifestado.
Bento XVI comentou o Evangelho do dia (Lc 9,28b-36), que fala sobre a Transfiguração do Senhor. Ele lembrou que o evangelista Lucas dá especial atenção ao fato de que Jesus se transfigurou enquanto rezava. A partir disso, o Santo Padre disse que esta passagem traz um ensinamento muito importante: o primado da oração, sem a qual todo o empenho do apostolado e da caridade se reduz ao ativismo.
“Na Quaresma aprendemos a dar o tempo certo à oração, pessoal e comunitária, que dá fôlego à nossa vida espiritual. Além disso, a oração não é um isolar-se do mundo e das suas contradições, como no Tabor queria fazer Pedro, mas a oração reconduz ao caminho, à ação”.
O Santo Padre enfatizou ainda que sente esta Palavra de Deus particularmente dirigida a ele, neste momento de sua vida. Ele disse que o Senhor o chama para “subir o monte”, para dedicar-se mais à oração e à meditação, o que não significa abandonar a Igreja. “…se Deus me pede isto é para que eu possa continuar a servi-la com a mesma dedicação e o mesmo amor com o qual tenho buscado fazer até agora, mas de modo mais adequado à minha idade e às minhas forças”, disse.
Por fim, o Pontífice invocou a intercessão da Virgem Maria, para que auxilie todos os fiéis a seguir sempre Jesus, “na oração e nas obras de caridade”.
Após a oração mariana, Bento XVI dirigu saudações aos peregrinos de diversos idiomas, entre eles os de língua portuguesa. “Queridos peregrinos de língua portuguesa que viestes rezar comigo o Angelus: obrigado pela vossa presença e todas as manifestações de afeto e solidariedade, em particular pelas orações com que me estais acompanhando nestes dias. Que o bom Deus vos cumule de todas as bênçãos”.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O Papa verdadeiro, não o do preconceito


O Papa verdadeiro, não o do preconceito

Henrique Monteiro
Bento XVI resignou, do meu ponto de vista, por nenhum motivo obscuro, mas por ser quem é e sempre foi: um racionalista (ele mesmo escreveu e disse várias vezes que não era um místico) que entende profundamente o valor da vida e do ser humano. Como intelectual, Bento XVI é superior; como dirigente da Igreja Católica deu cabo de todos os preconceitos daqueles que, à data da sua eleição, queriam vê-lo como um mero "pastor alemão". Eu não sou católico, mas aprendi a respeitar a coerência e a elevação onde quer que elas estejam, bem como a tolerância e a convivência como valores indispensáveis à compreensão mútua. E por ter lido e ouvido de viva voz o Papa, considero-o uma figura impar na nossa intelectualidade.
Para não enfileirar com aqueles que só conseguem elogiar na hora da despedida, cito um artigo que escrevi há quase três anos nas páginas do Expresso precisamente sobre este Papa, quando ele visitou Portugal e eu tive a oportunidade de o ouvir. E deixo algumas notas finais escritas há dois anos, quando tive a oportunidade de apresentar em Portugal o livro "A Luz do Mundo" que resulta da longa entrevista que o jornalista Peter Seewald lhe fez. Já agora, nesse livro Bento XVI colocava a hipótese de resignar mediante certas circunstâncias, entre as quais estas que o levaram à coerência de o fazer. Eis o que escrevi há três anos:
"Mas por que estranha razão, a cada passo, se ouve dizer que este Papa é um reacionário temível? O que Bento XVI quis dizer aos convidados do CCB, entre eles muitos pertencentes a outras confissões ou não professando nenhuma, foi simples: que cada um deve fazer da sua vida um lugar de beleza e que a Igreja está sempre a aprender a conviver e a respeitar os outros; "outras verdades, ou as verdades dos outros". A mensagem foi de uma profunda tolerância e de esperança que a "Verdade" possa iluminar cada ser humano. Quem se sente ameaçado por palavras assim? Já no avião, Bento XVI desarmara a polémica da pedofilia ao afirmar que a perseguição à Igreja não nasce dos seus inimigos, mas do seu interior. A frase, que parecerá revolucionária a quem nada leu sobre Cristo - a começar pela Bíblia - está, no entanto, em perfeita linha com a melhor tradição da Igreja. Em Fátima, o Papa defendeu - e bem - a liberdade de culto.
E assim, Bento XVI surge-nos infinitamente melhor do que aquilo que dele dizem.
E aqui se revela o preconceito.
Não o estafado preconceito que é arma de arremesso de todos os pós-modernos quando em causa está uma hierarquia de valores; mas o preconceito daqueles que, dizendo-se despreconceituosos, não resistem a um teste simples: fazer a crítica coerente ao que o Papa diz - e não a um conjunto de ideias pre-formatadas que ele jamais defendeu.
A luta central de Bento XVI é contra a desregulação do ethos, da ética - a mesma desregulação que elevou a ganância e a especulação a deuses de pés de barro que se estatelaram no primeiro abanão. É uma luta árdua contra a desvalorização da vida, da família, do esforço honesto e da esperança que pode e deve envolver não apenas os católicos. No CCB, também os líderes de outras confissões saudaram as palavras do Papa.
É difícil ir contra aquilo que se convenciona, em determinado momento, ser moda: o chocante, o grotesco, a desconstrução, a ganância, o egotismo. E, uma vez que a Igreja Católica continua a aprendizagem da convivência, mais do que possível é desejável o caminho comum."
E assim terminava o texto escrito no Expresso. Quero apenas colocar mais cinco notas, já escritas igualmente, mas que tenho vindo a confirmar:
1) Como Bernard-Henry Levy também eu penso e escrevi que tudo o que diz respeito ao Vaticano e ao Papa surge na imprensa e em certos círculos acompanhado de preconceito, desonestidade e até desinformação
2) Posso testemunhar que Bento XVI tem razão quando afirma que ninguém faz, em concreto, tanto pelos pobres, pelos que passam mal e sobretudo pelos doentes de sida como a Igreja. Andei muito por África - cobri conflitos civis em Angola, Moçambique, África do Sul, Namíbia, Malawi, Congo, Zimbabwe e sei bem que nesse Continente, bem como noutras partes do mundo, a Igreja tem uma obra assinalável. Há nos locais mais recônditos, sujos, doentios, depressivos sempre alguém que, por nada ou quase nada em troca, está lá a ajudar os outros. Diria que 100% são crentes e desses a maioria cristãos e a maior parte católicos.
3) A reação do Papa às denúncias do escândalo da pedofilia foi esta, exatamente, que transcrevo (e não o que por aí anda a correr: "Desde que sejam verdade são bem vindas - a verdade, conjugada com o amor corretamente entendido é o valor primordial". Eis algo que é raro, senão impossível, ouvir de alguém responsável, nomeadamente na política.
4) A ideia da racionalidade na Fé (ou na crença) liga-se a uma questão pertinente que raras pessoas gostam de responder. Esta: se a cultura, ou o múnus da cristandade no Ocidente perder a sua força estruturante da sociedade quem ou o quê vai assumir o seu lugar?
5) Ratzinger tem toda a razão quando defende que a tolerância está em perigo com as doutrinas politicamente corretas. O seu exemplo é para mim paradigmático. Ei-lo "está a difundir-se uma nova intolerância (...) existem regras ensaiadas de pensamento que são impostas a todos e que são depois anunciadas como uma espécie de tolerância negativa. Como quem diz que, por causa da tolerância negativa não pode haver crucifixos nos edifícios públicos. Basicamente isto significa a abolição da tolerância"
Este texto vai longo, mas penso que vale a pena refletir sem preconceitos sobre esta figura e sobre o exemplo que ele dá a tanta gente. Ninguém é eterno e menos insubstituível. A dignidade dos cargos está relacionada com a dignidade de quem os exerce.
Twitter: @HenriquMonteiro https://twitter.com/HenriquMonteiro

Facebook:Henrique Monteiro http://www.facebook.com/hmonteiro

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI
PARA A QUARESMA DE 2013
 
 
Crer na caridade suscita caridade  
«Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (
1 Jo 4, 16)  
  Queridos irmãos e irmãs! A celebração da Quaresma, no contexto do Ano da fé, proporciona-nos uma preciosa ocasião para meditar sobre a relação entre fé e caridade: entre o crer em Deus, no Deus de Jesus Cristo, e o amor, que é fruto da acção do Espírito Santo e nos guia por um caminho de dedicação a Deus e aos outros. 1. A fé como resposta ao amor de Deus Na minha primeira Encíclica, deixei já alguns elementos que permitem individuar a estreita ligação entre estas duas virtudes teologais: a fé e a caridade. Partindo duma afirmação fundamental do apóstolo João: «Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1 Jo 4, 16), recordava que, «no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. (...) Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um “mandamento”, mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro» (Deus caritas est, 1). A fé constitui aquela adesão pessoal - que engloba todas as nossas faculdades - à revelação do amor gratuito e «apaixonado» que Deus tem por nós e que se manifesta plenamente em Jesus Cristo. O encontro com Deus Amor envolve não só o coração, mas também o intelecto: «O reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade à d’Ele une intelecto, vontade e sentimento no acto globalizante do amor. Mas isto é um processo que permanece continuamente a caminho: o amor nunca está "concluído" e completado» (ibid., 17). Daqui deriva, para todos os cristãos e em particular para os «agentes da caridade», a necessidade da fé, daquele «encontro com Deus em Cristo que suscite neles o amor e abra o seu íntimo ao outro, de tal modo que, para eles, o amor do próximo já não seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequência resultante da sua fé que se torna operativa pelo amor» (ibid., 31). O cristão é uma pessoa conquistada pelo amor de Cristo e, movido por este amor - «caritas Christi urget nos» (2 Cor 5, 14) - , está aberto de modo profundo e concreto ao amor do próximo (cf. ibid., 33). Esta atitude nasce, antes de tudo, da consciência de ser amados, perdoados e mesmo servidos pelo Senhor, que Se inclina para lavar os pés dos Apóstolos e Se oferece a Si mesmo na cruz para atrair a humanidade ao amor de Deus. «A fé mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por nós e assim gera em nós a certeza vitoriosa de que isto é mesmo verdade: Deus é amor! (...) A fé, que toma consciência do amor de Deus revelado no coração trespassado de Jesus na cruz, suscita por sua vez o amor. Aquele amor divino é a luz – fundamentalmente, a única - que ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir» (ibid., 39). Tudo isto nos faz compreender como o procedimento principal que distingue os cristãos é precisamente «o amor fundado sobre a fé e por ela plasmado» (ibid., 7). 2. A caridade como vida na fé Toda a vida cristã consiste em responder ao amor de Deus. A primeira resposta é precisamente a fé como acolhimento, cheio de admiração e gratidão, de uma iniciativa divina inaudita que nos precede e solicita; e o «sim» da fé assinala o início de uma luminosa história de amizade com o Senhor, que enche e dá sentido pleno a toda a nossa vida. Mas Deus não se contenta com o nosso acolhimento do seu amor gratuito; não Se limita a amar-nos, mas quer atrair-nos a Si, transformar-nos de modo tão profundo que nos leve a dizer, como São Paulo: Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim (cf. Gl 2, 20). Quando damos espaço ao amor de Deus, tornamo-nos semelhantes a Ele, participantes da sua própria caridade. Abrirmo-nos ao seu amor significa deixar que Ele viva em nós e nos leve a amar com Ele, n'Ele e como Ele; só então a nossa fé se torna verdadeiramente uma «fé que actua pelo amor» (Gl 5, 6) e Ele vem habitar em nós (cf. 1 Jo 4, 12). A fé é conhecer a verdade e aderir a ela (cf. 1 Tm 2, 4); a caridade é «caminhar» na verdade (cf. Ef 4, 15). Pela fé, entra-se na amizade com o Senhor; pela caridade, vive-se e cultiva-se esta amizade (cf. Jo 15, 14-15). A fé faz-nos acolher o mandamento do nosso Mestre e Senhor; a caridade dá-nos a felicidade de pô-lo em prática (cf. Jo 13, 13-17). Na fé, somos gerados como filhos de Deus (cf. Jo 1, 12-13); a caridade faz-nos perseverar na filiação divina de modo concreto, produzindo o fruto do Espírito Santo (cf. Gl 5, 22). A fé faz-nos reconhecer os dons que o Deus bom e generoso nos confia; a caridade fá-los frutificar (cf. Mt 25, 14-30). 3. O entrelaçamento indissolúvel de fé e caridade À luz de quanto foi dito, torna-se claro que nunca podemos separar e menos ainda contrapor fé e caridade. Estas duas virtudes teologais estão intimamente unidas, e seria errado ver entre elas um contraste ou uma «dialéctica». Na realidade, se, por um lado, é redutiva a posição de quem acentua de tal maneira o carácter prioritário e decisivo da fé que acaba por subestimar ou quase desprezar as obras concretas da caridade reduzindo-a a um genérico humanitarismo, por outro é igualmente redutivo defender uma exagerada supremacia da caridade e sua operatividade, pensando que as obras substituem a fé. Para uma vida espiritual sã, é necessário evitar tanto o fideísmo como o activismo moralista. A existência cristã consiste num contínuo subir ao monte do encontro com Deus e depois voltar a descer, trazendo o amor e a força que daí derivam, para servir os nossos irmãos e irmãs com o próprio amor de Deus. Na Sagrada Escritura, vemos como o zelo dos Apóstolos pelo anúncio do Evangelho, que suscita a fé, está estreitamente ligado com a amorosa solicitude pelo serviço dos pobres (cf. At 6, 1-4). Na Igreja, devem coexistir e integrar-se contemplação e acção, de certa forma simbolizadas nas figuras evangélicas das irmãs Maria e Marta (cf. Lc 10, 38-42). A prioridade cabe sempre à relação com Deus, e a verdadeira partilha evangélica deve radicar-se na fé (cf. Catequese na Audiência geral de 25 de Abril de 2012). De facto, por vezes tende-se a circunscrever a palavra «caridade» à solidariedade ou à mera ajuda humanitária; é importante recordar, ao invés, que a maior obra de caridade é precisamente a evangelização, ou seja, o «serviço da Palavra». Não há acção mais benéfica e, por conseguinte, caritativa com o próximo do que repartir-lhe o pão da Palavra de Deus, fazê-lo participante da Boa Nova do Evangelho, introduzi-lo no relacionamento com Deus: a evangelização é a promoção mais alta e integral da pessoa humana. Como escreveu o Servo de Deus Papa Paulo VI, na Encíclica Populorum progressio, o anúncio de Cristo é o primeiro e principal factor de desenvolvimento (cf. n. 16). A verdade primordial do amor de Deus por nós, vivida e anunciada, é que abre a nossa existência ao acolhimento deste amor e torna possível o desenvolvimento integral da humanidade e de cada homem (cf. Enc. Caritas in veritate, 8). Essencialmente, tudo parte do Amor e tende para o Amor. O amor gratuito de Deus é-nos dado a conhecer por meio do anúncio do Evangelho. Se o acolhermos com fé, recebemos aquele primeiro e indispensável contacto com o divino que é capaz de nos fazer «enamorar do Amor», para depois habitar e crescer neste Amor e comunicá-lo com alegria aos outros. A propósito da relação entre fé e obras de caridade, há um texto na Carta de São Paulo aos Efésios que a resume talvez do melhor modo: «É pela graça que estais salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós; é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se glorie. Porque nós fomos feitos por Ele, criados em Cristo Jesus, para vivermos na prática das boas acções que Deus de antemão preparou para nelas caminharmos» (2, 8-10). Daqui se deduz que toda a iniciativa salvífica vem de Deus, da sua graça, do seu perdão acolhido na fé; mas tal iniciativa, longe de limitar a nossa liberdade e responsabilidade, torna-as mais autênticas e orienta-as para as obras da caridade. Estas não são fruto principalmente do esforço humano, de que vangloriar-se, mas nascem da própria fé, brotam da graça que Deus oferece em abundância. Uma fé sem obras é como uma árvore sem frutos: estas duas virtudes implicam-se mutuamente. A Quaresma, com as indicações que dá tradicionalmente para a vida cristã, convida-nos precisamente a alimentar a fé com uma escuta mais atenta e prolongada da Palavra de Deus e a participação nos Sacramentos e, ao mesmo tempo, a crescer na caridade, no amor a Deus e ao próximo, nomeadamente através do jejum, da penitência e da esmola. 4. Prioridade da fé, primazia da caridade Como todo o dom de Deus, a fé e a caridade remetem para a acção do mesmo e único Espírito Santo (cf. 1 Cor 13), aquele Espírito que em nós clama:«Abbá! – Pai!» (Gl 4, 6), e que nos faz dizer: «Jesus é Senhor!» (1 Cor 12, 3) e «Maranatha! – Vem, Senhor!» (1 Cor 16, 22; Ap 22, 20). Enquanto dom e resposta, a fé faz-nos conhecer a verdade de Cristo como Amor encarnado e crucificado, adesão plena e perfeita à vontade do Pai e infinita misericórdia divina para com o próximo; a fé radica no coração e na mente a firme convicção de que precisamente este Amor é a única realidade vitoriosa sobre o mal e a morte. A fé convida-nos a olhar o futuro com a virtude da esperança, na expectativa confiante de que a vitória do amor de Cristo chegue à sua plenitude. Por sua vez, a caridade faz-nos entrar no amor de Deus manifestado em Cristo, faz-nos aderir de modo pessoal e existencial à doação total e sem reservas de Jesus ao Pai e aos irmãos. Infundindo em nós a caridade, o Espírito Santo torna-nos participantes da dedicação própria de Jesus: filial em relação a Deus e fraterna em relação a cada ser humano (cf. Rm 5, 5). A relação entre estas duas virtudes é análoga à que existe entre dois sacramentos fundamentais da Igreja: o Baptismo e a Eucaristia. O Baptismo (sacramentum fidei) precede a Eucaristia (sacramentum caritatis), mas está orientado para ela, que constitui a plenitude do caminho cristão. De maneira análoga, a fé precede a caridade, mas só se revela genuína se for coroada por ela. Tudo inicia do acolhimento humilde da fé («saber-se amado por Deus»), mas deve chegar à verdade da caridade («saber amar a Deus e ao próximo»), que permanece para sempre, como coroamento de todas as virtudes (cf. 1 Cor 13, 13). Caríssimos irmãos e irmãs, neste tempo de Quaresma, em que nos preparamos para celebrar o evento da Cruz e da Ressurreição, no qual o Amor de Deus redimiu o mundo e iluminou a história, desejo a todos vós que vivais este tempo precioso reavivando a fé em Jesus Cristo, para entrar no seu próprio circuito de amor ao Pai e a cada irmão e irmã que encontramos na nossa vida. Por isto elevo a minha oração a Deus, enquanto invoco sobre cada um e sobre cada comunidade a Bênção do Senhor! Vaticano, 15 de Outubro de 2012  
 
BENEDICTUS PP. XVI

quinta-feira, 22 de novembro de 2012


Mensagem do Papa Bento XVI para a XXVIII Jornada Mundial da Juventude 2013

 «Ide e fazei discípulos entre as nações!» (cf. Mt 28,19)

Queridos jovens,
Desejo fazer chegar a todos vós minha saudação cheia de alegria e afeto. Tenho a certeza que muitos de vós regressastes a casa da Jornada Mundial da Juventude em Madri mais «enraizados e edificados em Cristo, firmes na fé» (cf. Col 2,7). Este ano, inspirados pelo tema: «Alegrai-vos sempre no Senhor» (Fil 4,4) celebramos a alegria de ser cristãos nas várias Dioceses. E agora estamo-nos preparando para a próxima Jornada Mundial, que será celebrada no Rio de Janeiro, Brasil, em julho de 2013.

Desejo, em primeiro lugar, renovar a vós o convite para participardes nesse importante evento. A conhecida estátua do Cristo Redentor, que se eleva sobre àquela bela cidade brasileira, será o símbolo eloquente deste convite: seus braços abertos são o sinal da acolhida que o Senhor reservará a todos quantos vierem até Ele, e o seu coração retrata o imenso amor que Ele tem por cada um e cada uma de vós. Deixai-vos atrair por Ele! Vivei essa experiência de encontro com Cristo, junto com tantos outros jovens que se reunirão no Rio para o próximo encontro mundial! Deixai-vos amar por Ele e sereis as testemunhas de que o mundo precisa.

Convido a vos preparardes para a Jornada Mundial do Rio de Janeiro, meditando desde já sobre o tema do encontro: «Ide e fazei discípulos entre as nações» (cf. Mt 28,19). Trata-se da grande exortação missionária que Cristo deixou para toda a Igreja e que permanece atual ainda hoje, dois mil anos depois. Agora este mandato deve ressoar fortemente em vosso coração. O ano de preparação para o encontro do Rio coincide com o Ano da fé, no início do qual o Sínodo dos Bispos dedicou os seus trabalhos à «nova evangelização para a transmissão da fé cristã». Por isso me alegro que também vós, queridos jovens, sejais envolvidos neste impulso missionário de toda a Igreja: fazer conhecer Cristo é o dom mais precioso que podeis fazer aos outros.
1. Uma chamada urgente

A história mostra-nos muitos jovens que, através do dom generoso de si mesmos, contribuíram grandemente para o Reino de Deus e para o desenvolvimento deste mundo, anunciando o Evangelho. Com grande entusiasmo, levaram a Boa Nova do Amor de Deus manifestado em Cristo, com meios e possibilidades muito inferiores àqueles de que dispomos hoje em dia. Penso, por exemplo, no Beato José de Anchieta, jovem jesuíta espanhol do século XVI, que partiu em missão para o Brasil quando tinha menos de vinte anos e se tornou um grande apóstolo do Novo Mundo. Mas penso também em tantos de vós que se dedicam generosamente à missão da Igreja: disto mesmo tive um testemunho surpreendente na Jornada Mundial de Madri, em particular na reunião com os voluntários.

Hoje, não poucos jovens duvidam profundamente que a vida seja um bem, e não veem com clareza o próprio caminho. De um modo geral, diante das dificuldades do mundo contemporâneo, muitos se perguntam: E eu, que posso fazer? A luz da fé ilumina esta escuridão, nos fazendo compreender que toda existência tem um valor inestimável, porque é fruto do amor de Deus. Ele ama mesmo quem se distanciou ou esqueceu d'Ele: tem paciência e espera; mais que isso, deu o seu Filho, morto e ressuscitado, para nos libertar radicalmente do mal. E Cristo enviou os seus discípulos para levar a todos os povos este alegre anúncio de salvação e de vida nova.

A Igreja, para continuar esta missão de evangelização, conta também convosco. Queridos jovens, vós sois os primeiros missionários no meio dos jovens da vossa idade! No final do Concílio Ecumênico Vaticano II, cujo cinquentenário celebramos neste ano, o Servo de Deus Paulo VI entregou aos jovens e às jovens do mundo inteiro uma Mensagem que começava com estas palavras: «É a vós, rapazes e moças de todo o mundo, que o Concílio quer dirigir a sua última mensagem, pois sereis vós a recolher o facho das mãos dos vossos antepassados e a viver no mundo no momento das mais gigantescas transformações da sua história, sois vós quem, recolhendo o melhor do exemplo e do ensinamento dos vossos pais e mestres, ides constituir a sociedade de amanhã: salvar-vos-eis ou perecereis com ela». E concluía com um apelo: «Construí com entusiasmo um mundo melhor que o dos vossos antepassados!» (Mensagem aos jovens, 8 de dezembro de 1965).
Queridos amigos, este convite é extremamente atual. Estamos passando por um período histórico muito particular: o progresso técnico nos deu oportunidades inéditas de interação entre os homens e entre os povos, mas a globalização destas relações só será positiva e fará crescer o mundo em humanidade se estiver fundada não sobre o materialismo mas sobre o amor, a única realidade capaz de encher o coração de cada um e unir as pessoas. Deus é amor. O homem que esquece Deus fica sem esperança e se torna incapaz de amar seu semelhante. Por isso é urgente testemunhar a presença de Deus para que todos possam experimentá-la: está em jogo a salvação da humanidade, a salvação de cada um de nós. Qualquer pessoa que entenda essa necessidade, não poderá deixar de exclamar com São Paulo: «Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho» (1 Cor 9,16).
2. Tornai-vos discípulos de Cristo

Esta chamada missionária vos é dirigida também por outro motivo: é necessário para o nosso caminho de fé pessoal. O Beato João Paulo II escrevia: «É dando a fé que ela se fortalece» (Encíclica Redemptoris missio, 2). Ao anunciar o Evangelho, vós mesmos cresceis em um enraizamento cada vez mais profundo em Cristo, vos tornais cristãos maduros. O compromisso missionário é uma dimensão essencial da fé: não se crê verdadeiramente, se não se evangeliza. E o anúncio do Evangelho não pode ser senão consequência da alegria de ter encontrado Cristo e ter descoberto n'Ele a rocha sobre a qual construir a própria existência. Comprometendo-vos no serviço aos demais e no anúncio do Evangelho, a vossa vida, muitas vezes fragmentada entre tantas atividades diversas, encontrará no Senhor a sua unidade; construir-vos-eis também a vós mesmos; crescereis e amadurecereis em humanidade.

Mas, que significa ser missionário? Significa acima de tudo ser discípulo de Cristo e ouvir sem cessar o convite a segui-Lo, o convite a fixar o olhar n'Ele: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» (Mt 11,29). O discípulo, de fato, é uma pessoa que se põe à escuta da Palavra de Jesus (cf. Lc 10,39), a quem reconhece como o Mestre que nos amou até o dom de sua vida. Trata-se, portanto, de cada um de vós deixar-se plasmar diariamente pela Palavra de Deus: ela vos transformará em amigos do Senhor Jesus, capazes de fazer outros jovens entrar nesta mesma amizade com Ele.
Aconselho-vos a guardar na memória os dons recebidos de Deus, para poder transmiti-los ao vosso redor. Aprendei a reler a vossa história pessoal, tomai consciência também do maravilhoso legado recebido das gerações que vos precederam: tantos cristãos nos transmitiram a fé com coragem, enfrentando obstáculos e incompreensões. Não o esqueçamos jamais! Fazemos parte de uma longa cadeia de homens e mulheres que nos transmitiram a verdade da fé e contam conosco para que outros a recebam. Ser missionário pressupõe o conhecimento deste patrimônio recebido que é a fé da Igreja: é necessário conhecer aquilo em que se crê, para podê-lo anunciar. Como escrevi na introdução do YouCat, o Catecismo para jovens que vos entreguei no Encontro Mundial de Madri, «tendes de conhecer a vossa fé como um especialista em informática domina o sistema operacional de um computador. Tendes de compreendê-la como um bom músico entende uma partitura. Sim, tendes de estar enraizados na fé ainda mais profundamente que a geração dos vossos pais, para enfrentar os desafios e as tentações deste tempo com força e determinação» (Prefácio).
3. Ide!

Jesus enviou os seus discípulos em missão com este mandato: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura! Quem crer e for batizado será salvo» (Mc 16,15-16). Evangelizar significa levar aos outros a Boa Nova da salvação, e esta Boa Nova é uma pessoa: Jesus Cristo. Quando O encontro, quando descubro até que ponto sou amado por Deus e salvo por Ele, nasce em mim não apenas o desejo, mas a necessidade de fazê-lo conhecido pelos demais. No início do Evangelho de João, vemos como André, depois de ter encontrado Jesus, se apressa em conduzir a Ele seu irmão Simão (cf. 1,40-42). A evangelização sempre parte do encontro com o Senhor Jesus: quem se aproximou d'Ele e experimentou o seu amor, quer logo partilhar a beleza desse encontro e a alegria que nasce dessa amizade. Quanto mais conhecemos a Cristo, tanto mais queremos anunciá-lo. Quanto mais falamos com Ele, tanto mais queremos falar d'Ele. Quanto mais somos conquistados por Ele, tanto mais desejamos levar outras pessoas para Ele.
Pelo Batismo, que nos gera para a vida nova, o Espírito Santo vem habitar em nós e inflama a nossa mente e o nosso coração: é Ele que nos guia para conhecer a Deus e entrar em uma amizade sempre mais profunda com Cristo. É o Espírito que nos impulsiona a fazer o bem, servindo os outros com o dom de nós mesmos. Depois, através do sacramento da Confirmação, somos fortalecidos pelos seus dons, para testemunhar de modo sempre mais maduro o Evangelho. Assim, o Espírito de amor é a alma da missão: Ele nos impele a sair de nós mesmos para «ir» e evangelizar. Queridos jovens, deixai-vos conduzir pela força do amor de Deus, deixai que este amor vença a tendência de fechar-se no próprio mundo, nos próprios problemas, nos próprios hábitos; tende a coragem de «sair» de vós mesmos para «ir» ao encontro dos outros e guiá-los ao encontro de Deus.
4. Alcançai todos os povos

Cristo ressuscitado enviou os seus discípulos para dar testemunho de sua presença salvífica a todos os povos, porque Deus, no seu amor superabundante, quer que todos sejam salvos e ninguém se perca. Com o sacrifício de amor na Cruz, Jesus abriu o caminho para que todo homem e toda mulher possa conhecer a Deus e entrar em comunhão de amor com Ele. E constituiu uma comunidade de discípulos para levar o anúncio salvífico do Evangelho até os confins da terra, a fim de alcançar os homens e as mulheres de todos os lugares e de todos os tempos. Façamos nosso esse desejo de Deus!
Queridos amigos, estendei o olhar e vede ao vosso redor: tantos jovens perderam o sentido da sua existência. Ide! Cristo precisa de também de vós. Deixai-vos envolver pelo seu amor, sede instrumentos desse amor imenso, para que alcance a todos, especialmente aos «afastados». Alguns encontram-se geograficamente distantes, enquanto outros estão longe porque a sua cultura não dá espaço para Deus; alguns ainda não acolheram o Evangelho pessoalmente, enquanto outros, apesar de o terem recebido, vivem como se Deus não existisse. A todos abramos a porta do nosso coração; procuremos entrar em diálogo com simplicidade e respeito: este diálogo, se vivido com uma amizade verdadeira, dará seus frutos. Os «povos», aos quais somos enviados, não são apenas os outros Países do mundo, mas também os diversos âmbitos de vida: as famílias, os bairros, os ambientes de estudo ou de trabalho, os grupos de amigos e os locais de lazer. O jubiloso anúncio do Evangelho se destina a todos os âmbitos da nossa vida, sem exceção.
Gostaria de destacar dois campos, nos quais deve fazer-se ainda mais solícito o vosso empenho missionário. O primeiro é o das comunicações sociais, em particular o mundo da internet. Como tive já oportunidade de dizer-vos, queridos jovens, «senti-vos comprometidos a introduzir na cultura deste novo ambiente comunicador e informativo os valores sobre os quais assenta a vossa vida! [...] A vós, jovens, que vos encontrais quase espontaneamente em sintonia com estes novos meios de comunicação, compete de modo particular a tarefa da evangelização deste "continente digital"» (Mensagem para o XLIII Dia Mundial das Comunicações Sociais, 24 de maio de 2009). Aprendei, portanto, a usar com sabedoria este meio, levando em conta também os perigos que ele traz consigo, particularmente o risco da dependência, de confundir o mundo real com o virtual, de substituir o encontro e o diálogo direto com as pessoas por contatos na rede.
O segundo campo é o da mobilidade. Hoje são sempre mais numerosos os jovens que viajam, seja por motivos de estudo ou de trabalho, seja por diversão. Mas penso também em todos os movimentos migratórios, que levam milhões de pessoas, frequentemente jovens, a se transferir e mudar de Região ou País, por razões econômicas ou sociais. Também estes fenômenos podem se tornar ocasiões providenciais para a difusão do Evangelho. Queridos jovens, não tenhais medo de testemunhar a vossa fé também nesses contextos: para aqueles com quem vos deparareis, é um dom precioso a comunicação da alegria do encontro com Cristo.
5. Fazei discípulos!

Penso que já várias vezes experimentastes a dificuldade de envolver os jovens da vossa idade na experiência da fé. Frequentemente tereis constatado que em muitos deles, especialmente em certas fases do caminho da vida, existe o desejo de conhecer a Cristo e viver os valores do Evangelho, mas tal desejo é acompanhado pela sensação de ser inadequados e incapazes. Que fazer? Em primeiro lugar, a vossa solicitude e a simplicidade do vosso testemunho serão um canal através do qual Deus poderá tocar seu coração. O anúncio de Cristo não passa somente através das palavras, mas deve envolver toda a vida e traduzir-se em gestos de amor. A ação de evangelizar nasce do amor que Cristo infundiu em nós; por isso, o nosso amor deve conformar-se sempre mais ao d'Ele. Como o bom Samaritano, devemos manter-nos solidários com quem encontramos, sabendo escutar, compreender e ajudar, para conduzir, quem procura a verdade e o sentido da vida, à casa de Deus que é a Igreja, onde há esperança e salvação (cf. Lc 10,29-37). Queridos amigos, nunca esqueçais que o primeiro ato de amor que podeis fazer ao próximo é partilhar a fonte da nossa esperança: quem não dá Deus, dá muito pouco. Aos seus apóstolos, Jesus ordena: «Fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei» (Mt 28,19-20). Os meios que temos para «fazer discípulos» são principalmente o Batismo e a catequese. Isto significa que devemos conduzir as pessoas que estamos evangelizando ao encontro com Cristo vivo, particularmente na sua Palavra e nos Sacramentos: assim poderão crer n'Ele, conhecerão a Deus e viverão da sua graça. Gostaria que cada um de vós se perguntasse: Alguma vez tive a coragem de propor o Batismo a jovens que ainda não o receberam? Convidei alguém a seguir um caminho de descoberta da fé cristã? Queridos amigos, não tenhais medo de propor aos jovens da vossa idade o encontro com Cristo. Invocai o Espírito Santo: Ele vos guiará para entrardes sempre mais no conhecimento e no amor de Cristo, e vos tornará criativos na transmissão do Evangelho.
 
6. Firmes na fé

Diante das dificuldades na missão de evangelizar, às vezes sereis tentados a dizer como o profeta Jeremias: «Ah! Senhor Deus, eu não sei falar, sou muito novo». Mas, também a vós, Deus responde: «Não digas que és muito novo; a todos a quem eu te enviar, irás» (Jr 1,6-7). Quando vos sentirdes inadequados, incapazes e frágeis para anunciar e testemunhar a fé, não tenhais medo. A evangelização não é uma iniciativa nossa nem depende primariamente dos nossos talentos, mas é uma resposta confiante e obediente à chamada de Deus, e portanto não se baseia sobre a nossa força, mas na d'Ele. Isso mesmo experimentou o apóstolo Paulo: «Trazemos esse tesouro em vasos de barro, para que todos reconheçam que este poder extraordinário vem de Deus e não de nós» (2 Cor 4,7).
Por isso convido-vos a enraizar-vos na oração e nos sacramentos. A evangelização autêntica nasce sempre da oração e é sustentada por esta: para poder falar de Deus, devemos primeiro falar com Deus. E, na oração, confiamos ao Senhor as pessoas às quais somos enviados, suplicando-Lhe que toque o seu coração; pedimos ao Espírito Santo que nos torne seus instrumentos para a salvação dessas pessoas; pedimos a Cristo que coloque as palavras nos nossos lábios e faça de nós sinais do seu amor. E, de modo mais geral, rezamos pela missão de toda a Igreja, de acordo com a ordem explícita de Jesus: «Pedi, pois, ao dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita!» (Mt 9,38). Sabei encontrar na Eucaristia a fonte da vossa vida de fé e do vosso testemunho cristão, participando com fidelidade na Missa ao domingo e sempre que possível também durante a semana. Recorrei frequentemente ao sacramento da Reconciliação: é um encontro precioso com a misericórdia de Deus que nos acolhe, perdoa e renova os nossos corações na caridade. E, se ainda não o recebestes, não hesiteis em receber o sacramento da Confirmação ou Crisma preparando-vos com cuidado e solicitude. Junto com a Eucaristia, esse é o sacramento da missão, porque nos dá a força e o amor do Espírito Santo para professar sem medo a fé. Encorajo-vos ainda à prática da adoração eucarística: permanecer à escuta e em diálogo com Jesus presente no Santíssimo Sacramento, torna-se ponto de partida para um renovado impulso missionário.
Se seguirdes este caminho, o próprio Cristo vos dará a capacidade de ser plenamente fiéis à sua Palavra e de testemunhá-Lo com lealdade e coragem. Algumas vezes sereis chamados a dar provas de perseverança, particularmente quando a Palavra de Deus suscitar reservas ou oposições. Em certas regiões do mundo, alguns de vós sofrem por não poder testemunhar publicamente a fé em Cristo, por falta de liberdade religiosa. E há quem já tenha pagado com a vida o preço da própria pertença à Igreja. Encorajo-vos a permanecer firmes na fé, certos de que Cristo está ao vosso lado em todas as provas. Ele vos repete: «Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus» (Mt 5,11-12).

7. Com toda a Igreja

Queridos jovens, para permanecer firmes na confissão da fé cristã nos vários lugares onde sois enviados, precisais da Igreja. Ninguém pode ser testemunha do Evangelho sozinho. Jesus enviou em missão os seus discípulos juntos: o mandato «fazei discípulos» é formulado no plural. Assim, é sempre como membros da comunidade cristã que prestamos o nosso testemunho, e a nossa missão torna-se fecunda pela comunhão que vivemos na Igreja: seremos reconhecidos como discípulos de Cristo pela unidade e o amor que tivermos uns com os outros (cf. Jo 13,35). Agradeço ao Senhor pela preciosa obra de evangelização que realizam as nossas comunidades cristãs, as nossas paróquias, os nossos movimentos eclesiais. Os frutos desta evangelização pertencem a toda a Igreja: «um é o que semeia e outro o que colhe», dizia Jesus (Jo 4,37).
A propósito, não posso deixar de dar graças pelo grande dom dos missionários, que dedicam toda a sua vida ao anúncio do Evangelho até os confins da terra. Do mesmo modo bendigo o Senhor pelos sacerdotes e os consagrados, que ofertam inteiramente as suas vidas para que Jesus Cristo seja anunciado e amado. Desejo aqui encorajar os jovens chamados por Deus a alguma dessas vocações, para que se comprometam com entusiasmo: «Há mais alegria em dar do que em receber!» (At 20,35). Àqueles que deixam tudo para segui-Lo, Jesus prometeu o cêntuplo e a vida eterna (cf. Mt 19,29).
Dou graças também por todos os fiéis leigos que se empenham por viver o seu dia-a-dia como missão, nos diversos lugares onde se encontram, tanto em família como no trabalho, para que Cristo seja amado e cresça o Reino de Deus. Penso particularmente em quantos atuam no campo da educação, da saúde, do mundo empresarial, da política e da economia, e em tantos outros âmbitos do apostolado dos leigos. Cristo precisa do vosso empenho e do vosso testemunho. Que nada – nem as dificuldades, nem as incompreensões – vos faça renunciar a levar o Evangelho de Cristo aos lugares onde vos encontrais: cada um de vós é precioso no grande mosaico da evangelização!

8. «Aqui estou, Senhor!»

Em suma, queridos jovens, queria vos convidar a escutar no íntimo de vós mesmos a chamada de Jesus para anunciar o seu Evangelho. Como mostra a grande estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, o seu coração está aberto para amar a todos sem distinção, e seus braços estendidos para alcançar a cada um. Sede vós o coração e os braços de Jesus. Ide testemunhar o seu amor, sede os novos missionários animados pelo seu amor e acolhimento. Segui o exemplo dos grandes missionários da Igreja, como São Francisco Xavier e muitos outros.

No final da Jornada Mundial da Juventude em Madri, dei a bênção a alguns jovens de diferentes continentes que partiam em missão. Representavam a multidão de jovens que, fazendo eco às palavras do profeta Isaías, diziam ao Senhor: «Aqui estou! Envia-me» (Is 6,8). A Igreja tem confiança em vós e vos está profundamente grata pela alegria e o dinamismo que trazeis: usai os vossos talentos generosamente ao serviço do anúncio do Evangelho. Sabemos que o Espírito Santo se dá a quantos, com humildade de coração, se tornam disponíveis para tal anúncio. E não tenhais medo! Jesus, Salvador do mundo, está conosco todos os dias, até o fim dos tempos (cf. Mt 28,20).

Dirigido aos jovens de toda a terra, este apelo assume uma importância particular para vós, queridos jovens da América Latina. De fato, na V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em Aparecida, no ano de 2007, os bispos lançaram uma «missão continental». E os jovens, que constituem a maioria da população naquele continente, representam uma força importante e preciosa para a Igreja e para a sociedade. Por isso sede vós os primeiros missionários. Agora que a Jornada Mundial da Juventude retorna à América Latina, exorto todos os jovens do continente: transmiti aos vossos coetâneos do mundo inteiro o entusiasmo da vossa fé.

A Virgem Maria, Estrela da Nova Evangelização, também invocada sob os títulos de Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora de Guadalupe, acompanhe cada um de vós em vossa missão de testemunhas do amor de Deus. A todos, com especial carinho, concedo a minha Bênção Apostólica.
Vaticano, 18 de outubro de 2012.
BENEDICTUS PP XVI
 

 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

TEXTO INÉDITO DO PAPA BENTO XVI
PUBLICADO POR OCASIÃO DO 50º ANIVERSÁRIO
DO INÍCIO DO CONCÍLIO VATICANO II


Foi um dia maravilhoso aquele 11 de Outubro de 1962 quando, com a entrada solene de mais de dois mil Padres conciliares na Basílica de São Pedro em Roma, se abriu o Concílio Vaticano II. Em 1931, Pio XI colocara no dia 11 de Outubro a festa da Maternidade Divina de Maria, em recordação do facto que mil e quinhentos anos antes, em 431, o Concílio de Éfeso tinha solenemente reconhecido a Maria esse título, para expressar assim a união indissolúvel de Deus e do homem em Cristo. O Papa João XXIII fixara o início do Concílio para tal dia com o fim de confiar a grande assembleia eclesial, por ele convocada, à bondade materna de Maria e ancorar firmemente o trabalho do Concílio no mistério de Jesus Cristo. Foi impressionante ver entrar os bispos provenientes de todo o mundo, de todos os povos e raças: uma imagem da Igreja de Jesus Cristo que abraça todo o mundo, na qual os povos da terra se sentem unidos na sua paz.

Foi um momento de expectativa extraordinária pelas grandes coisas que deviam acontecer. Os concílios anteriores tinham sido quase sempre convocados para uma questão concreta à qual deviam responder; desta vez, não havia um problema particular a resolver. Mas, por isso mesmo, pairava no ar um sentido de expectativa geral: o cristianismo, que construíra e plasmara o mundo ocidental, parecia perder cada vez mais a sua força eficaz. Mostrava-se cansado e parecia que o futuro fosse determinado por outros poderes espirituais. Esta percepção do cristianismo ter perdido o presente e da tarefa que daí derivava estava bem resumida pela palavra «actualização»: o cristianismo deve estar no presente para poder dar forma ao futuro. Para que pudesse voltar a ser uma força que modela o porvir, João XXIII convocara o Concílio sem lhe indicar problemas concretos ou programas. Foi esta a grandeza e ao mesmo tempo a dificuldade da tarefa que se apresentava à assembleia eclesial.

Obviamente, cada um dos episcopados aproximou-se do grande acontecimento com ideias diferentes. Alguns chegaram com uma atitude mais de expectativa em relação ao programa que devia ser desenvolvido. Foi o episcopado do centro da Europa – Bélgica, França e Alemanha – que se mostrou mais decidido nas ideias. Embora a ênfase no pormenor se desse sem dúvida a aspectos diversos, contudo havia algumas prioridades comuns. Um tema fundamental era a eclesiologia, que devia ser aprofundada sob os pontos de vista da história da salvação, trinitário e sacramental; a isto vinha juntar-se a exigência de completar a doutrina do primado do Concílio Vaticano I através duma valorização do ministério episcopal. Um tema importante para os episcopados do centro da Europa era a renovação litúrgica, que Pio XII já tinha começado a realizar. Outro ponto central posto em realce, especialmente pelo episcopado alemão, era o ecumenismo: o facto de terem suportado juntos a perseguição da parte do nazismo aproximara muito os cristãos protestantes e católicos; agora isto devia ser compreendido e levado por diante a nível de toda a Igreja. A isto acrescentava-se o ciclo temático Revelação-Escritura-Tradição-Magistério. Entre os franceses, foi sobressaindo cada vez mais o tema da relação entre a Igreja e o mundo moderno, isto é, o trabalho sobre o chamado «Esquema XIII», do qual nasceu depois a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo. Atingia-se aqui o ponto da verdadeira expectativa suscitada pelo Concílio. A Igreja, que ainda na época barroca tinha em sentido lato plasmado o mundo, a partir do século XIX entrou de modo cada vez mais evidente numa relação negativa com a era moderna então plenamente iniciada. As coisas deviam continuar assim? Não podia a Igreja cumprir um passo positivo nos tempos novos? Por detrás da vaga expressão «mundo de hoje», encontra-se a questão da relação com a era moderna; para a esclarecer, teria sido necessário definir melhor o que era essencial e constitutivo da era moderna. Isto não foi conseguido no «Esquema XIII». Embora a Constituição pastoral exprima muitas elementos importantes para a compreensão do «mundo» e dê contribuições relevantes sobre a questão da ética cristã, no referido ponto não conseguiu oferecer um esclarecimento substancial.

Inesperadamente, o encontro com os grandes temas da era moderna não se dá na grande Constituição pastoral, mas em dois documentos menores, cuja importância só pouco a pouco se foi manifestando com a recepção do Concílio. Trata-se antes de tudo da Declaração sobre a liberdade religiosa, pedida e preparada com grande solicitude sobretudo pelo episcopado americano. A doutrina da tolerância, tal como fora pormenorizadamente elaborada por Pio XII, já não se mostrava suficiente face à evolução do pensamento filosófico e do modo se concebia como o Estado moderno. Tratava-se da liberdade de escolher e praticar a religião e também da liberdade de mudar de religião, enquanto direitos fundamentais na liberdade do homem. Pelas suas razões mais íntimas, tal concepção não podia ser alheia à fé cristã, que entrara no mundo com a pretensão de que o Estado não poderia decidir acerca da verdade nem exigir qualquer tipo de culto. A fé cristã reivindicava a liberdade para a convicção religiosa e a sua prática no culto, sem com isto violar o direito do Estado no seu próprio ordenamento: os cristãos rezavam pelo imperador, mas não o adoravam. Sob este ponto de vista, pode-se afirmar que o cristianismo, com o seu nascimento, trouxe ao mundo o princípio da liberdade de religião. Todavia a interpretação deste direito à liberdade no contexto do pensamento moderno ainda era difícil, porque podia parecer que a versão moderna da liberdade de religião pressupusesse a inacessibilidade da verdade ao homem e, consequentemente, deslocasse a religião do seu fundamento para a esfera do subjectivo. Certamente foi providencial que, treze anos depois da conclusão do Concílio, tivesse chegado o Papa João Paulo II de um país onde a liberdade de religião era contestada pelo marxismo, ou seja, a partir duma forma particular de filosofia estatal moderna. O Papa vinha quase duma situação que se parecia com a da Igreja antiga, de modo que se tornou de novo visível o íntimo ordenamento da fé ao tema da liberdade, sobretudo a liberdade de religião e de culto.

O segundo documento, que se havia de revelar depois importante para o encontro da Igreja com a era moderna, nasceu quase por acaso e cresceu com sucessivos estratos. Refiro-me à declaração Nostra aetate, sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs. Inicialmente havia a intenção de preparar uma declaração sobre as relações entre a Igreja e o judaísmo – um texto que se tornou intrinsecamente necessário depois dos horrores do Holocausto (shoah). Os Padres conciliares dos países árabes não se opuseram a tal texto, mas explicaram que se se queria falar do judaísmo, então era preciso dedicar também algumas palavras ao islamismo. Quanta razão tivessem a este respeito, só pouco a pouco o fomos compreendendo no ocidente. Por fim cresceu a intuição de que era justo falar também doutras duas grandes religiões – o hinduísmo e o budismo – bem como do tema da religião em geral. A isto se juntou depois espontaneamente uma breve instrução relativa ao diálogo e à colaboração com as religiões, cujos valores espirituais, morais e socioculturais deviam ser reconhecidos, conservados e promovidos (cf. n. 2). Assim, num documento específico e extraordinariamente denso, inaugurou-se um tema cuja importância na época ainda não era previsível. Vão-se tornando cada vez mais evidentes tanto a tarefa que o mesmo implica como a fadiga ainda necessária para tudo distinguir, esclarecer e compreender. No processo de recepção activa, foi pouco a pouco surgindo também uma debilidade deste texto em si extraordinário: só fala da religião na sua feição positiva e ignora as formas doentias e falsificadas de religião, que têm, do ponto de vista histórico e teológico um vasto alcance; por isso, desde o início, a fé cristã foi muito crítica em relação à religião, tanto no próprio seio como no mundo exterior.

Se, ao início do Concílio, tinham prevalecido os episcopados do centro da Europa com os seus teólogos, nas sucessivas fases conciliares o leque do trabalho e da responsabilidade comuns foi-se alargando cada vez mais. Os bispos reconheciam-se aprendizes na escola do Espírito Santo e na escola da colaboração recíproca, mas foi precisamente assim que se reconheceram servos da Palavra de Deus que vivem e trabalham na fé. Os Padres conciliares não podiam nem queriam criar uma Igreja nova, diversa. Não tinham o mandato nem o encargo para o fazer: eram Padres do Concílio com uma voz e um direito de decisão só enquanto bispos, quer dizer em virtude do sacramento e na Igreja sacramental. Então não podiam nem queriam criar uma fé diversa ou uma Igreja nova, mas compreendê-las a ambas de modo mais profundo e, consequentemente, «renová-las» de verdade. Por isso, uma hermenêutica da ruptura é absurda, contrária ao espírito e à vontade dos Padres conciliares.

No cardeal Frings, tive um «pai» que viveu de modo exemplar este espírito do Concílio. Era um homem de significativa abertura e grandeza, mas sabia também que só a fé guia para se fazer ao largo, para aquele horizonte amplo que resta impedido ao espírito positivista. É esta fé que queria servir com o mandato recebido através do sacramento da ordenação episcopal. Não posso deixar de lhe estar sempre grato por me ter trazido – a mim, o professor mais jovem da Faculdade teológica católica da universidade de Bonn – como seu consultor na grande assembleia da Igreja, permitindo que eu estivesse presente nesta escola e percorresse do interior o caminho do Concílio. Este livro reúne os diversos escritos, com os quais pedi a palavra naquela escola; trata-se de pedidos de palavra totalmente fragmentários, dos quais transparece o próprio processo de aprendizagem que o Concílio e a sua recepção significaram e ainda significam para mim. Em todo o caso espero que estes vários contributos, com todos os seus limites, possam no seu conjunto ajudar a compreender melhor o Concílio e a traduzi-lo numa justa vida eclesial. Agradeço sentidamente ao arcebispo Gerhard Ludwig Müller e aos colaboradores do Institut Papst Benedikt XVI pelo extraordinário compromisso que assumiram para realizar este livro.

Castel Gandolfo, na memória do bispo Santo Eusébio de Vercelas, 2 de Agosto de 2012.


BENTO XVI

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O que é a Fé?luz01
A primeira e mais básica resposta à pergunta do título poderá, sem dúvida, ser formulada do seguinte modo: a fé é uma determinada atitude dos humanos. Como tal, é bem começar por uma descrição breve das caraterísticas dessa atitude, que aliás são partilhadas por todos os tipos de fé, religiosa ou não, cristã ou não.
A atitude humana que melhor pode descrever a atitude de fé é a da confiança. Ter fé é, no sentido mais básico, confiar em algo ou alguém diferente de nós mesmos. Assim, opõem-se-lhe duas atitudes: a da desconfiança total, que levaria, em muitos casos, ao desespero; ou a da autoconfiança total, ou seja, a da confiança apenas em nós mesmos. Portanto, a fé pressupõe capacidade de confiar e capacidade de confiar noutros.
A confiança noutros implica, ao mesmo tempo, a capacidade de receber algo, reconhecendo que não podemos conquistar e produzir tudo o que somos e temos por nós mesmos. Porque quem confia em alguém mais do que em si mesmo, sabe que há dimensões da vida que só esse alguém, em quem se confia, pode dar.
O caso mais gritante é o do bebé, que confia na sua mãe ou no seu pai, relativamente a tudo o que tem a ver com a sua existência. Não considera, ainda – como acontecerá depois com muitos adultos – que é autossuficiente e que merece, pelo seu trabalho, aquilo que tem. O que tem e o que é, sente-o como dádiva permanente dos pais e confia nessa dádiva, despreocupadamente.
A atitude do bebé aproxima-nos de um nível de fé importante: o que se relaciona com o fundamento da nossa existência, seja quanto à sua origem seja quanto ao seu futuro. Porque não somos nós que nos damos a nós mesmos nem que garantimos o nosso próprio futuro. Assim sendo, ou desesperamos desconfiadamente da nossa existência, perante o perigo de deixar de ser, ou confiamos numa dádiva permanente do ser. Esse será o nível mais profundo da fé, relativamente ao sentido primeiro e último da existência de cada um, que é acolhido como uma dádiva milagrosa e imerecida. Ter fé é acolher a existência como dádiva gratuita de outro.
Mas, a este nível, esse Outro em que se confia é ainda muito indefinido. É apenas o próprio mistério de sermos – alguns diriam, «por acaso». Aceitar que há um Deus pessoal que nos origina e nos quer na vida, dando-nos gratuitamente essa vida, para que a aceitemos, mesmo quando é dura e parece não fazer sentido – isso é já uma modalidade religiosa ou teológica da confiança. A fé, então, torna-se fé teológica. Mas o Deus que nos dá a nós mesmos é, ainda, uma entidade muito vaga.
Aceitar que esse Deus, que dá a vida e nos dá para a vida, vive connosco, se revela e nos liberta da morte em Jesus Cristo, é confiar de modo cristão. Ter fé cristã é, portanto, aceitar que Deus, em Jesus Cristo, nos dá a vida, para além da morte e para além de todas a nossas capacidades de a conquistar. Isso permite uma atitude de confiança que abre à esperança, para além de todo o absurdo aparente. E, ao mesmo tempo, implica o conhecimento de que o único caminho dessa esperança é a caridade, como dádiva da vida ao outro. Ou seja, a fé cristã está sempre ligada às outras duas virtudes teologais, pois só assim o dinamismo do acolhimento da vida dada por Deus é possível.
A confiança fundamental que determina a atitude de fé do cristão implica, ao mesmo tempo, a confissão convicta de um conjunto de afirmações sobre Deus e sobre os humanos, a que chamamos Credo ou símbolo da fé. Nessas afirmações condensa-se a descrição da nossa confiança e dos seus motivos. Por isso, a confissão explícita de fé é imprescindível à atitude crente, mesmo que a sua formulação linguística deva tudo ás linguagens humanas. E essa confissão, assim como a atitude correspondente, vive-se num leque de relações comunitárias, que nos ligam aos outros crentes, do nosso tempo e de outras gerações, assim como aos próprios não-crentes. Ou seja, não há fé cristã se não for inserida num dinamismo comunitário e numa tradição. Se assim não fosse, a fé seria puro sentimento individual e subjetivo, de iniciativa própria e para auto realização pessoal. Mas, ao assim ser, negava-se a si mesma, pois negava a básica atitude de confiança no outro, mais do que em si mesmo.
João Manuel Duque, in Ecclesia, 25-09-2012